Cotidiano No capítulo que trata do cenário atual e suas misérias, lugar em que passamos os dias em busca de notícias que tragam esperança e ensejo de uma vida melhor, desalento é algo que, volta e meia, nos toma de assalto com o intuito único de bulir com o nosso espírito, diga-se de passagem, um tanto exaurido de suas forças, embora alerta. Logicamente que motivo não falta.
Não é à toa que, por vezes, nos flagramos na busca frenética por uma série qualquer na TV, febre dos tempos modernos, como forma de aliviar a alma por meio do esquecimento. De fato, é preciso correr dos noticiários se desejarmos fugir da loucura cotidiana e manter a sanidade.
É assim, afinal, que assistimos ao passar ligeiro do tempo, que corre na garupa de um trem veloz. Indago, então, para mim mesmo, se, para me manter informado, preciso estar metido até o pescoço nesse torvelinho de aporrinhações. É guerra, é massacre, é ameaça, é tarifaço no aço, é acinte, é fanatismo, é gente abobalhada que idolatra a ignorância, é a violência... é a sede de paz.
Por causa dessas e outras, sucumbimos, pois, com alguma frequência, à tristeza, sem saber exatamente o porquê.
Dia desses, o céu amanheceu assim, meio besta, mal-humorado, potencializando a melancolia que brotava não sei bem de onde. Certamente oriunda da colcha de retalhos, toda ela confeccionada com recortes de notícias, as mais torpes, que povoam o nosso cotidiano.
Mas, realizando uma tarefa qualquer no ambiente externo de casa, ouvi, de repente, alguém que cantava, causando-me surpresa. Pensei até que fosse uma mensagem dos céus a repreender-me por tamanho desdém para com as coisas belas da vida.
Cantava, pois, o sujeito, a alegria de se saber vivo, indivíduo privilegiado a quem fora concedido o direito à vida que lhe propicia andar por aí desprovido das neuroses que nos acometem.
Dei uma vista d’olhos para fora do portão e me deparei com o cantor, um homem que não atingira a meia-idade e que ganha o sustento recolhendo materiais para reciclagem. Qualquer centavo que lhe for parar no bolso, por certo, será de grande valia.
Pus-me, então, a pensar enquanto ouvia as canções que o trabalhador entoava com vontade, digamos, com prazer, como se a vida lhe fosse preciosa demais para vivê-la taciturno.
Um pensamento daninho, no entanto, não perdeu a oportunidade de me dizer que o tal sujeito é feliz porque não acompanha os noticiários, porque não sabe que o império nos ameaça noite e dia, porque nem desconfia de que ideias fascistas costumam nos tirar o sono, porque há um massacre em andamento noutro canto do mundo, porque, porque...
Mas de que fala você, ó pensamento inoportuno? O homem de nada sabe porque não tem meios para saber, porque luta diariamente catando aquele material que não nos serve, para sobreviver, ora!
E ele é feliz – sobreveio-me a mensagem. Do seu modo é feliz, e a sua felicidade, proclamada ali na calçada por meio de seu canto, foi capaz de me contagiar e mandar um recado leve e, ao mesmo tempo duro, de que devo ouvir mais os pássaros, sentir o vento e pensar em como é belo este mundo do qual faço parte.
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