Cotidiano
FOTO: Gilmar

E o sambista vinha reclamando de um tal mal-estar que aporrinhava a sua alma e lhe mantinha apreensivo o coração. Uma dor no peito convenientemente atribuída a gases. Muito natural se considerarmos sua idade que ultrapassara os sessenta, meio avançada, aliás, para os dias de hoje. É possível até que daqui a algumas décadas sessentões tenham aparência e disposição de quarentões, assim como quarentões foram considerados velhos um dia.
Em se tratando, porém, do contesto atual, não há muita surpresa na presença constante de desconfortos orgânicos, os mais variados, em pessoas que foram agraciadas com o dom da longevidade sessentona.
Mesmo assim, conselho é o que não faltou para que o turrão do samba, também amante de uma boa partida de futebol, procurasse o auxílio de um especialista. O médico, por certo, pediria alguns exames a fim de descobrir a causa de tamanho incômodo, e receitaria qualquer coisa que detivesse a angústia física que consequentemente leva à mental. Essa é a expectativa que todo ser humano carrega em situações semelhantes, embora nem sempre resulte positiva a visita ao consultório.
De qualquer forma, era o caminho apontado pelas pessoas que o amavam e que com ele conviviam. Mas o sambista escolheu o outro, dando por encerrado o show. Foi numa noite fria, enfim, que o samba se calou. Na hora derradeira, ainda fui capaz de ouvir o habitual “boa noite, boa noite”, música que sempre encerrou cada espetáculo.
Veio a óbito – foi a expressão utilizada pelo profissional da emergência assim que o examinou depositado, sem muito cuidado, no chão do aposento, onde caíra. Não precisam fazer uso de termos tão técnicos. Basta que se diga: morreu. De fato, incomoda bastante a palavra “óbito”, que nos remete a uma frieza bem própria de quem não tem e nunca teve envolvimento com o finado.
Mas para as pessoas que ali testemunhavam o sinistro, bem próximas ao batuqueiro, sobretudo em amor, isso foi uma porrada bem dada no estômago, mesmo que já pressentissem o pior. Verdade seja dita, amigo, o diabo da esperança é sempre a última a morrer. E, neste caso, ela morreu alguns instantes depois da vítima.
Mas o senso comum diz que a pessoa partiu e que, por isso, não sente mais nada, o que já se configura um consolo. Foi-se, afinal. Cabe agora às pessoas que permanecem segurar a onda da maneira que puderem.
Imaginemos, contudo, que lá na planície, onde muitos creem, caminham os espíritos que partiram desta para melhor, a pessoa, com sua personalidade intacta, permaneça pairando num ponto qualquer de onde contemple todo o drama que envolveu a sua partida. Há de ser sofrimento atroz! No campo das ideias, enfim, tudo é possível, uma vez que nada sabemos a respeito de nossa vinda para cá e, principalmente, de nossa partida.
E se assim for, acabou por tomar ciência, o cantor, de que, por um descuido dos seus, seu corpo fora parar num cemitério público e depositado numa vala comum. Fora, enfim, ignorado um jazigo em seu nome, noutro lugar, onde deveria repousar ao lado da mãe, que tanto amava.
Para a gente que cuidou do sepultamento, no entanto, nada mais fazia sentido. Tratava-se apenas de um corpo inerte. Mas, e quanto à memória da pessoa que tanto representou para todos em vida? A ela foi concedido somente o nada, o vazio e o esquecimento.
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